Ruth Menezes
Há alguns anos venho desenvolvendo este trabalho, que híbrido no sentido de formas de produção, expõe meu sentimento em relação ao papel da mulher na sociedade contemporânea.
A esta série nomeio “A mulher de Lot”, em homenagem àquela que teve a coragem e a ousadia de olhar para trás, ainda que isso lhe tenha custado a própria vida. E junto a esse ensaio a poesia de Wislawa Szymborska, que considero uma das maiores vozes da Literatura contemporânea universal.
“A mulher de Lot” (excerto)
“Dizem que olhei para trás de curiosa.
Mas quem sabe eu também tinha outras razões.
Olhei para trás de pena pela tigela de prata.
Por distração – amarrando a tira da sandália.
Para não olhar mais para a nuca virtuosa
do meu marido Lot.
Pela súbita certeza de que se eu morresse
ele nem diminuiria o passo.
Pela desobediência dos mansos.
Alerta à perseguição.
Afetada pelo silêncio,
na esperança de Deus ter mudado de ideia.[…]
[…] Na beira, trotava um hamster apoiado nas duas patas.
E foi então que ambos olhamos para trás.
Não, não. Eu continuava correndo,
me arrastava e levantava,
enquanto a escuridão não caiu do céu
e com ela o cascalho ardente e as aves mortas.
Sem poder respirar, rodopiei várias vezes.
Se alguém me visse, por certo acharia que eu dançava.
É concebível que meus olhos estivessem abertos.
É possível que ao cair meu rosto fitasse a cidade.”
Wislawa Szymborska
“A partir do quarto dia, os ratos começaram a sair para morrerem em grupos. Dos porões, das adegas, dos esgotos, subiam em longas filas titubeantes, para virem vacilar à luz, girar sobre si mesmos e morrer perto dos seres humanos. À noite, nos corredores e nas ruelas, ouviam-se distintamente seus guinchos de agonia. De manhã, nos subúrbios, encontravam-se estendidos nas sarjetas com uma pequena flor de sangue nos focinhos pontiagudos; uns, inchados e pútridos; outros, rígidos e com bigodes ainda eriçados. Na própria cidade, eram encontrados em pequenos montes nos patamares ou nos pátios. Vinham, também, morrer isoladamente nos vestíbulos das repartições, nos recreios das escolas, por vezes nos terraços dos cafés.”
Excerto de A peste, de Albert Camus
O que, por vezes, mais nos impacta, adquire vida própria e se não « vomitado », nos engole. Como em um romance ou conto clariceano, o indizível continua sendo indizível, porque há coisas neste mundo de meu Deus que não podem ser expressas por palavras ou até mesmo por outras formas artísticas, ainda que se tente. Ainda que se use o grotesco, ainda que se busque o sublime… não há como descrever determinadas coisas. Mas, há como se dar pistas: a tudo o que vivenciamos durante o ano de 2020, as palavras de Camus a descrever os ratos a sair dos esgotos, dos seus porões e subsolos, em uma Peste que transcende a pandemia de Coronavirus. E é neste ensaio, denominado “Temporal no jardim” em uma quarta-feira de cinzas, que gostaria de tentar expressar esse período, certamente histórico, tanto do ponto de vista individual, quanto coletivo. A falar do luto, da vida, da morte, das desandanças políticas, e do cansaço após um ano de idas e vindas.